Friday, November 17, 2006

ESTAÇÃO

Acorda todos os dias às 04:30 horas e segue no silêncio do restante da casa. Leva na marmita o almoço que a mulher preparou no dia anterior com carinho. Antes de sair de casa, beija os filhos com o olhar.
Quando chega à estação, se dirige à casa de máquinas. Sente o ar quente que a sala expira. “Pronto. Mais um de trabalho, graças a Deus.” Cumprimenta os companheiros: “Vamos a luta, porque só quem tá vivo trabalha.”
Parte o trem, ligando uma estação à outra.
Os trilhos levam vidas e caminhos. Coisa engraçada esse tal de destino, sujeitinho leva-e-traz.
É um dia ensolarado de primavera, desses que alegram os olhos e fazem o rosto sorrir, mesmo quando ele não quer.
Dá gosto ver a estrada desse jeito: a terra tem cheiro de casa; a máquina e os passageiros são um corpo só.
Em viagem agitada, se permanece no vagão. Em viagem tranqüila, como essa, pode-se permitir um passeio pelo trem.
O moço de terno está mais uma vez conosco. O moço de terno mais uma vez fuma olhando a janela. O moço de terno mais uma vez não repara quando eu passo ao seu lado. Nossa, como envelhece esse moço.
Já está quase na hora do almoço e, na verdade, pouca fome é o que há.
A estrada se diverte mais uma vez e acena com sua brisa: vento bom, de novidade. Novidade quase sempre tem cheiro gostoso, como de bolo recém-saído do forno.
A outra estação se aproxima, de acordo com o quê conta o barulho dos bancos, das malas, dos sapatos e das vozes. É melhor voltar para o meu lugar, fiscal nunca é muito simpático à observação.
“Boa tarde, senhores. Sejam bem-vindos.”
Na outra vida eu quero é nascer passarinho, desses que cantam com tanta vontade que o peito até incha.

Friday, October 20, 2006

3X4 DE DINÁRIO GALEGA

Dinário Galega era um homem revolucionário: gostava de usar meias pretas com sapato marrom. Pela manhã, ia caminhando para o trabalho e fazia caretas para os outros como quem diz: - Bom dia!

Não se permitia rotina, não almoçava no horário, não assinava o ponto.

Dinário Galega chorava com o entardecer e se irritava com pequenas coisas como esperar o elevador. Detestava a xérox, o Ibope e a impressora. Tinha medo de dentista, de sinal fechado e de política externa.

Guardava uma coleção de tampinhas de refrigerante para se lembrar que adoçante, corante e acidulante definitivamente não podiam fazer bem à saúde.

Ganhava o dia com um brinde, desses que a gente recebe em mercearia como troco.

Dinário Galega acreditava que os sonhos podiam virar realidade e que os pesadelos eram uma tola produção do imaginário.

Não tinha carro do ano, usava bicicleta. Admirava os que sabiam andar de patinete e fazer bolas com o chiclete.

Dinário Galega desenhava torres, luas e estrelas nos rodapés dos Memorandos que entregava ao chefe com um sorriso tímido. Vez ou outra, levava uma bronca. Vez ou outra, uma repreensão. Vez ou outra, um comentário debochado. Mesmo assim, continuava com o costume.

Dinário Galega, no entanto, sentia saudades daqueles que já morreram – em vida ou não. Em especial, sentia muita pena dos que já havia matado. Nesses dias de perturbação, Dinário dançava para ver se o movimento fazia efeito e a chuva chegava como purificação.

Um belo baile de se assistir, aliás.

CRIAÇÃO COLETIVA

Vou te contar uma estória.

Ela tem começo e meio, mas não tem fim.
De locação aleatória -
Estória de amor intensa como o tempo.
Sem personagem, ela não lhe revela nada?

Parte-se.

Tem perfume,
Tem gosto,
Tem tato,
Tem vida.

Desse ponto, uma visão.
Daquele ponto, uma estratégia.

Na mão direita, uma atitude.
Na mão esquerda, pulso!

(Pensa, pensa, pensa!)

Certas coisas não são assim.

Que cresça junto.

Thursday, September 28, 2006

SOBRE O PODER

Invadir sua casa de arranque,
Tomar suas propriedades,
Revirar sua alma e reduzí-la ao acaso,
Irromper seus pensamentos,
Dominar suas vontades.

Controlar os seus instintos,
Debochar dos seus desejos
E impor minha vontade.

Ser a dona da verdade
Criando uma própria e a difundindo como única.

Ser temida,
Ser respeitada,
Ser distante,
Ser ilusão.

Monday, September 11, 2006

ÂNSIA

Tenho andando com ânsia de sentimento.
Acordado de madrugada, com vontade de abraço.
Vontade de espalhar besteiras afetuosas ao vento.
Dizer tudo em um olhar.
Ânsia de afeto.
Na falta de foco, espalho meu carinho pelo mundo.
Desse sentimento maior que eu: tem vida, pulso e voz – embora se cale.
Ao mesmo tempo, um sentimento imaturo e atrapalhado que não tem objetivos em sua expressão.
Sentimento tal, que me desconcerta e desequilibra.
Sopro no coração, daqueles de tirar o fôlego. Já sentiu isso?
Expectativa de novidade que salve a monotonia, de viver nova história, única e bonita em sua singularidade.
Romance-camafeu, etiquetado com “frágil”.
Que modifique o presente e dê fôlego ao futuro.
Que me transforme e que me possibilite adicionar meu capítulo à história.
De forma leve e, por gentileza, com ternura.

Tuesday, April 18, 2006

O MENINO

O menino que fala comigo ri da minha cara ao acordar: “A quem você que parecer tão séria?” Ele corre de um lado para o outro, bagunça o meu quarto e se dá por satisfeito ao encontrar a minha lista de atividades. Ao lado do horário reservado ao banco, ele desenha um sorriso: “Coloca esse ao sair da porta”, ele diz.
O menino que fala comigo vai saltitando ao meu lado, enquanto me esforço para chegar logo ao ponto ônibus. Ele se distrai ao ver uma borboleta e sai correndo a perseguí-la. Eu fico sentada esperando. Ele volta e me entrega uma flor: “Para te trazer um bom-dia”.
O menino que fala comigo aponta para as pessoas: “Olha só aquele cara! Que pessoa mais esquisita...” “Menino, modos!” – eu o repreendo. Ele me imita: “Modos!”-ri, e complementa: “Para quem?”
O menino que fala comigo me acompanha ao trabalho. Ele senta ao meu lado e assobia uma canção, ao mesmo tempo em que eu busco mais uma forma de fazer toda aquela confusão fazer sentido. “Um doce por um sorriso ou um sorriso por um doce?” - sem perceber, já estou na rua andando ao seu lado.
O menino que fala comigo me acompanha na volta a casa. Ele se diverte ao descobrir que ainda tenho muito que fazer: “Atarefada, atravessada, atrapalhada...” - assim ele brinca até arranjar nova distração.
O menino que fala comigo aponta para as estrelas: “Oras! Verrugas! Essas regras bobas!”, fala em tom triunfal. Ele continua próximo à janela ao mesmo tempo em que separo os papéis para o próximo dia. De vez em quando, ele grita: “Olha! Olha! Mais uma! Com essa, já são cinco estrelas! Estamos cheios de pedidos!”
Sem querer, mais uma vez adormeço sobre a escrivaninha.
Nessa hora, o menino que fala comigo me acorda e, delicadamente, me guia até a cama: “Dorme e sonha. Continuamos a brincadeira amanhã.”
Ele zela pelo meu sono. Sentado no alpendre, o menino conversa com o vento: “Um dia, amigo, um dia ela também se permite.”

MALANDRO

Malandro desce a rua, pega a curva e já sabe seu destino. Não é bobo, confere o bolso e ainda está lá: a navalha afiada a postos para qualquer imprevisto. Não lembra muito da noite passada. Não lembra de onde surgiu o corte em seu rosto.
Malandro segue seu caminho. A Lapa amanhece. Os arcos pela manhã em nada lembram o seu habitat. Homens de gravata, mulheres com suas pastas em punho. Ônibus, vans, táxis. Bancos, prédios comerciais, sedes administrativas. Sirene, buzina e o camelódromo. Todos gritam nos ouvidos do malandro. Todos pioram sua ressaca. Cada vez mais confuso, ele procura seu abrigo. Quem mandou ficar acordado até aquela hora? Esse não é seu tempo. Esse não é seu lugar.
Ele atravessa a Avenida. Procura o boteco mais escondido, o pé-sujo mais autêntico onde possa tomar um café. Busca por um conselheiro. Sente falta do português atrás do balcão. Todos os bares fechados. Só lhe resta a padaria. Ele não gosta da sua comida. Limpinha demais. Seu organismo a rejeita. Ele desiste e segue pela esquerda.
Atravessa uma, duas, três, quatro pistas. Já nem sabe mais onde vai. Sente falta da morena. Ela tem balanço e graça. Bem diferente dessas que vê pela cidade, acrobatas do salto-alto. Onde é que está aquela safada?
Desiludido, cansa do centro. Refaz todo o percurso. Novamente, a Lapa mascarada. Rua da Lapa, Joaquim Silva, Mem de Sá, Lavradio. Após isso, só ele conhece o endereço. Ele e o senhorio que não recebe tostão algum pelo aluguel faz um bom tempo. Bota a mão no bolso. Não é possível que tenha esquecido! Ah! Aqui está! “Seu Doca, olhe o que comprei para o Senhor: um relógio! Estou te tornando um homem elegante. Daqui a pouco, já poderemos até sair juntos!” Ele sorri. Seu sorriso preenche a sala com felicidade. Seu Doca ri: “ Garoto, você não tem jeito mesmo! Vá logo dormir.”
Ele sobe as escadas. Abre a porta. Deita na cama. O que diabos aconteceu na noite passada? Pensando nisso, pega no sono. Só acorda no final da tarde. Recomposto, olha no espelho: “Aí está você!” Toma um banho rápido. Se perfuma e se veste. Desce as escadas. Seu Doca não está mais lá. O velho ranzinza deve ter ido implicar com uma pobre alma qualquer. Com ele não. Eles são uma família.
Segue a Lapa que é sua. O barulho dos copos, a garrafa sendo aberta, a música que começa tímida. Ele a incentiva e assobia. Dá um jeito de arranjar o sustento da noite. Não é por maldade, é por necessidade. E é tão pouco! Tem gente que faz bem pior.
Á noite, ali está sua casa. Ele ri e samba. Malandro entende que para os arcos virem sua primavera é necessário que antes ocorra a manhã. Mas ele é que nem é mais bobo de circular por ela, é muito perigosa! Nela, nem ele tem segurança.

NO ESCURINHO

- Já pensou a loucura que é a vida de uma borboleta?
- Hã?
- A vida de uma borboleta. Ela nasce lagarta, constrói um casulo e vira borboleta.
- Você não constrói nada.
- Uma borboleta. Ela, que era lagarta.
- Essa não serve para você.
- Belo dia, ela faz casulo, fica quietinha e vira borboleta.
- Você não fica quietinha.
- Você não entendeu a plenitude da coisa ainda. Ela faz casulo e lá dentro, vira borboleta. Depois, vira artigo de colecionador...
- Ninguém vai querer colecionar você.
-... voa em novos ares, vê outros povos, conhece diferentes mundos...
- Ninguém quer te conhecer!
- Todo mundo gosta de borboletas.
- Ninguém gosta de você.
- Elas são lindas! E vivem tão pouco...
- Taí. Você também vive pouco. E vai morrer mais cedo ainda se continuar com esse vício de cheirar Baygon. Vício besta!
- Elas entram no casulo e viram borboletas! Lindas borboletas!
- O máximo que você vai entrar é pelo cano. Barata tonta, é para a esquerda!

Sunday, April 02, 2006

DAS COISAS EM QUE ACREDITEI

Eu acreditei na fada dos dentes. Colocava o dente embaixo do travesseiro, o deixava a noite inteira lá. No dia seguinte, ele sumia e em seu lugar aparecia uma moeda. Ás vezes de 10, outras de 5, algumas vezes de 1. Não importava se era molar ou canino. Só dependia do humor da fada.

Mas a fada um dia se encheu e, de repente, deixou de depositar as moedas.

Eu acreditei no duende com seu pote de ouro no final do arco-íris. Pior ainda, eu acreditei que eu conseguiria chegar ao pote de ouro. Esperava ansiosa pela chegada do verão. Com o verão, as chuvas de verão. E, com as chuvas de verão, os arcos-íris.

E lá ia eu, dentro do mar, nadando, procurando a porcaria do final do arco-íris. Mas, quem disse que eu achei a droga do final?

Encontrei foi uma onda maior do que eu. E ela me rodou, rodou e rodou. E na beira da praia é que eu acabei, acabei, acabei. Cadê o salva-vidas?

Desisti. E nunca mais nadei com tanta confiança.

Eu acreditei no Papai Noel. Fui boazinha durante um ano inteiro. Quer dizer, fui aquilo que os outros diziam que era ser boazinha. Comi quiabo achando gostoso. Não fiz mal-criação porque era feio. Usei vestido com babado e sapatinho branco de verniz em dia de sol porque era bonito.

Chegou o final do ano.

E eu não fiz uma cartinha. Fiz um dossiê.

Levei uns dois dias inteiros no mínimo para escrever tudo o que eu queria ganhar.

E eu pedi como presente tudo aquilo que eu conhecia na face da terra: Desde hamster (que era o bichinho da moda) até ao pogobol (que era, também, o brinquedo da moda). Menos boneca. Eu não gostava de boneca.

Chegou o Natal. E o Papai Noel também. Pelo menos na minha casa.

O safado chegou bem na hora que eu estava dormindo. Entrou pela porta da frente, tocando sininho. Cara barulhento! E eu na porta dos fundos. O malandro entrou correndo, deixou uns pacotes, e foi embora pelo elevador com a mesma velocidade com que chegou.

E eu, descendo no elevador dos fundos para encontrá-lo na portaria. Esqueci que ele andava de trenó. O perdi.

Voltei para casa.

Debaixo da árvore, alguns pacotes.

Um conjunto de bonecas da Barbie. Sacana.

Eu também acreditei no Coelhinho da Páscoa. Acreditei de verdade que ele era o único ser na face da terra que colocava ovos de chocolate. Mesmo que a professora e todo o resto do mundo dissesse que não.

Até criei a minha versão da história: o Coelhinho da Páscoa trabalhava numa das salas da fábrica do Papai Noel, produzindo seus ovinhos. Ele não precisava de tanto espaço assim. Os duendes o ajudavam. Faziam os brinquedos que viam dentro de brinde. Na manhã do domingo de Páscoa, ele pegava o trenó emprestado. E deixava os ovinhos nas casas das pessoas.

Eu ganhei uma caixa de bombons. Acho que não deu tempo de fazer tanto brinquedo.

Cresci.

Comecei a ver que por trás de tudo em que eu acreditava, existia uma recompensa. Material.

A fada dos dentes pagava, Papai Noel presenteava, o Coelhinho dava chocolate.

As minhas boas ações foram, indiretamente, então, meu primeiro emprego.

E, estranhamente, como que num passe de mágica, eu deixei de acreditar.

APRESENTAÇÃO DA NOYA

O Blog Da Noya pode ser confissional, pode ser uma confusão de pensamentos, um momento de liberdade, uma intenção e pode até, ser ficcional.

O Blog da Noya pode ser tudo: basta sentir e permitir.